sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Primeiro Século do Franciscanismo: Da Simples Fraternidade à Estruturação da Ordem


 

Histórico e Subdivisão dos Franciscanos

 

Breve histórico e subdivisão dos franciscanos


A Ordem São Francisco teve início em 1209 quando, convertido, estabeleceu para si próprio vida de intensa vivência do Evangelho, em austera mortificação, penitência e pobreza. A ele, juntaram-se 12 companheiros, com quem estabeleceu as regras iniciais. Nesta mesma época, animada e decidida a seguir seu exemplo, Santa Clara de Assis, foi por São Francisco orientada a ingressar no mosteiro beneditino de Assis e, posteriormente foi convidada a fundar uma congregação feminina,  destinada a irmãs religiosas de vida monástica contemplativa. Em curtíssimo espaço de tempo, o clima pela devoção e piedade contagiou todos os segmentos da sociedade. Os leigos e mesmo pessoas  casadas,  movidos pela espírito franciscano,  ardentemente desejavam abandonar-se à Deus, de forma que São Francisco acabou fundando também a  Ordem Franciscana Secular, destinadas aos casados, leigos ou pessoas  solteiras.


O Papa Inocênio III, já em 1209, havia aprovado a Ordem verbalmente, mas foi em 1221 que a  regra franciscana recebeu aprovação canônica, firmada pelo Papa Honório III,  cuja regra permanece em vigor até os dias atuais.  No decorrer do tempo, a estrutura da congregação dividiu-se em diversas ramificações, canonicamente estudadas e aprovadas, de forma que a Ordem Franciscana hoje, divide-se assim:


Primeira Ordem, composta por:


1. Ordem dos Frades Menores, ou observantes (O.F.M.)


2. Ordem dos Frades Menores Conventuais (O.F.M.conv)


3. Ordem dos Frades Menores Capuchinhos (O.F.M.cap)


Segunda Ordem, composta por:


1. Ordem das Irmãs Clarissas


2. Ordem das Irmãs Concepcionistas


3. Ordem das Irmãs Capuchinhas


(Todas contemplativas  enclausuradas, seguidoras de Santa Clara/ São Francisco de Assis)


Terceira Ordem, composta por:


1. Terceira Ordem Regular (T.O.R.)


2. Terceira Ordem Secular, ou Ordem Franciscana Secular (O.F.S)


Existem diversos outros ramos da Ordem Terceira de São Francisco, das quais destacam-se a Fraternidade Sacerdotal Franciscana Secular (FSFS), Pequena Família Franciscana (PFF) e Juventude Franciscana (JUFRA).


A PRIMEIRA ORDEM


No início, os “penitentes de Assis”, como os primeiros frades se chamavam a si mesmos, foram pregadores nômades. No ano 1209/1210, levaram um documento a Roma onde tinham escrito várias palavras da Bíblia, escolhidas por eles para que fossem normativas para sua forma de vida. Também estavam incluídas algumas poucas prescrições para regular a vida comum, que os separava do “movimento de penitentes” em geral.


Assim, começaram uma história própria, como fraternidade franciscana. Essa primeira forma de vida, aprovada oralmente pelo Papa, foi atualizada de ano em ano. Em 1221, conhecida sob o nome “Regula non bullata” (RegNB), tornou-se tão volumosa que foi preciso preparar uma nova redação. Esta nova versão foi aprovada por uma bula papal em 1223 (= Regula bullata), abreviada pela sigla (RegB), que continua válida até hoje. Portanto, pode-se dizer que a fraternidade inicial tornou-se a Ordem dos Frades Menores no ano 1223 (cf. Mt 18 1-4).


É importante, porém, notar que a pessoa de Francisco continua sendo a força modelar (= a “forma minorum” ) apesar e além da Regra. Ele é o “irmão por excelência” que encarna o ideal comum (cf. Jordão de Giano 17).


Atualmente, a fraternidade OFM vive uma grande tensão entre duas interpretações dos seus ideias fundamentais: de um lado, procuram uma vida bastante desprovida, fazendo trabalhos assalariados pesados, praticando a mendicância quando for necessário e dedicando-se à pregação; e do outro lado, levam uma vida de oração/contemplação e cultivam o convívio com as pessoas de fora por meio de um relacionamento fraterno ou até mesmo maternal. Essa tensão – que em Francisco se encontrava ainda unificada – levou no decorrer da história a muitos movimentos de reforma que até hoje continuam surgindo. Fundamentalmente, trata-se de duas orientações diferentes, porém, inter-ligadas.


Atenção a Deus pela oração e contemplação


Fazem parte desta atitude a pobreza radical, o despojamento absoluto de qualquer posse. Procura-se viver as mesmas condições sociais que as sofridas por todos os seres humanos acabrunhados pela pobreza. Assim, a pobreza voluntária se torna solidariedade modelar.


Doação aos homens e ao mundo em solidariedade vivida


Ligada esta segunda atitude é a proximidade a todas as pessoas humanas indistintamente, a vida nas cidades, a cura de almas, a assistência social, etc, permitindo, inclusive, o uso e a posse de recursos materiais necessários para exercer atividades apostólicas.


A história da Ordem dos Frades Menores pode ser caracterizadea por um ininterrupto movimento pendular, acentuando ora um pólo, ora o pólo oposto.


As novas tentativas entraram na história da Ordem sob vários títulos: Espirituais, Bernardinos, Descalços, Alcantarinos, Recoletos e muitos outros mais. Foi desta história, cheia de tensões, que nasceram os três ramos da Primeira Ordem ainda hoje existentes.


Pois, em 1517, o então Papa Leão X queria criar condições claras; por isso, a única Ordem existente naquela época, que tinha um único Ministro Geral, foi por ele dividida em duas Ordens independentes, seguidas pouco tempo depois por mais uma terceira. O Papa, porém, estava equivocada: o movimento pendular voltou a funcionar, fazendo surgir ainda outros agrupamentos. O Papa Leão XIII voltou a uni-los numa única entidade.


Hoje, encontramos três Ordens masculinas, independentes e autônomas que – todas as três – reconhecem Francisco como seu fundador, obedecendo à sua Regra de 1223:


OFM (=Ordem dos Frades Menores)


Entre as três, essa Ordem têm o maior número de membros. Normalmente é chamada pelo povo simplesmente de “Ordem dos Franciscanos”, ou Franciscanos, ou ainda, Observantes, Bernardinos etc. Em 1517, se deu a separação da Ordem dos Conventuais. A reorganização subseqüente da OFM foi novamente introduzida pelo Papa Leão XIII (União Leonina).


OFMConv (=Ordem dos Frades Menores Conventuais)


Numericamente, esta Ordem é a menor das três. Também é conhecida sob outros nomes, p.ex.: Minoritas etc.


OFMCap (=Ordem dos Frades Menores Capuchinhos)


Nos anos 1521-1528, surgiu a partir da OFM, num processo muito doloroso, a comunidade dos Capuchinhos, originalmente concebida como uma comunidade puramente contemplativa. O seu nome é derivado de um longo e pontudo capuz, usado pelos seus membros. Não demorou muito que também esse grupo começasse a intervir na vida pública, e até mesmo na política.


Novas iniciativas, cisões e dissidências nas três Ordens comprovam que o movimento pendular continua até hoje de modo ininterrupto.


Falta mencionar que esta história de reformas teve suas conseqüências para as comunidades femininas e para a Ordem Terceira também. A agregação a um ou outro desses movimentos foi chamada “obediência”. A Ordem Terceira, porém, foi se distanciando nos últimos anos da “obediência” a uma das outras Ordens, procurando sua independência. Isto não toca ou diminui, porém, a união e a assistência espirituais.


A SEGUNDA ORDEM


Em 1263, o Papa Urbano IV determinou que as “Damas Pobres de São Damião”, quer dizer, todas as Irmãs que – de forma mais ou menos pronunciada – estavam ligadas a Clara, deveriam ser chamadas de “Clarissas”.


Esse nome homogêneo esconde, porém, a história muito complexa desta Ordem. Francisco tinha legado uma Regra a Clara, quando ela resolveu segui-lo. Na época, porém, não foi possível por vários motivos que Clara assumisse um estilo de vida realmente parecido com o de Francisco. Por exemplo, era fora de questão para ela viver uma vida de pregador nômade. De outro lado, ela deu muita importância à questão da pobreza.


Pelo menos, Clara conseguiu em 1216 o assumi chamado “privilégio de pobreza”, que ela sempre fez re-aprovar pelos papas seguintes. A vida das Clarissas assemelhava-se mais ou menos à vida levada pelos eremitas (cf. RegEr). Inequivocadamente, o acento estava sobre a dedicação a Deus pela oração, pelo culto e pela contemplação.


O Cardeal Hugolino, porém, achava a base jurídica e espiritual desta comunidade de mulheres de São Damião absolutamente insuficiente. Além disso, constatou que outras comunidades parecidas estavam surgindo em muitas cidades italianas.


Então, ele fundou a “Ordem das Damas Pobres de São Damião”, reunindo sob esse título também outras comunidades femininas que haviam surgido espontaneamente, sem se referir explicitamente a Francisco e Clara. O Papa colocou a Ordem sobre um fundamento monástico no sentido beneditino e escreveu uma nova Regra para ela (1218-1220). O pensamento central desta Regra é a clausura absoluta. Mais do que a metade da Regra se ocupa com a questão da clausura que é fixada nos seus mínimos detalhes.


É para se admirar que Clara – apesar desta Regra tão pouco franciscana – conseguisse levar uma vida mística muito profunda. Fica a impressão de que ela seguiu essa Regra, que lhe foi imposta, somente “pro forma”. Ademais, em 1234, Clara entrou em contato com Santa Inês de Praga, que estava batalhando para conseguir um fundamento franciscano para a Segunda Ordem. O Papa Gregório IX, antigamente Cardeal Hugolino, não quis atendê-la; chamava a Regra das Irmãs, escrita por Francisco, “um alimento para crianças de peito”, absolutamente insuficiente para mulheres adultas.


Somente o seguinte Papa Inocêncio IV cedeu um pouco, ao escrever mais uma nova Regra para Clara. Mas também este Papa se enganou: como tentasse impor aos conventos a obrigação de aceitar dotes e propriedades, suscitou uma resistência resoluta da parte de Clara. Ela começou a escrever sua própria Regra, assemelhando-a à Regra dos Frades Menores de 1223, reforçando assim a unidade espiritual entre a Primeira e a Segunda Ordem. Guardava, porém, a forma de vida contemplativa, seguindo – neste ponto – em parte, as prescrições da Regra de Hugolino e adaptando-as ao espírito franciscano que é mais livre neste aspecto.


Na parte central de sua Regra, Clara descreve sua própria experiência espiritual que a conduziu a aliar-se a Francisco num espírito de fraternidade e pobreza absoluta. Isto foi absolutamente fora do comum. Constatou-se que Clara frisou mais do que o próprio Francisco – que é considerado “o irmão por excelência” – o caráter democrático da convivência conventual.


Pouco antes de sua morte, a Regra recebeu a aprovação da Igreja. São poucos, porém, os mosteiros que receberam autorização de seguir essa Regra. Foi o Papa Urbano IV quem determinou que todos os membros da Ordem das “Damas Pobres de São Damião” usassem – indistintamente – o nome de “Clarissas”, pois na época da morte de Clara já havia aproximadamente 150 comunidades que se declararam seguidoras da Santa.


Por sua vez, o mesmo Papa Urbano IV também fez questão de escrever mais uma Regra nova para as Clarissas. Essa Regra urbaniana ignora completamente a espiritualidade de Clara. Foi bem tarde que chegou a hora certa para a aplicação da Regra escrita por Clara: hoje em dia, a maioria dos mosteiros segue a sua Regra.


Falta ainda mencionar que os empenhos de reforma da Primeira Ordem também tinham conseqüências para as Clarissas. Em primeiro lugar, é preciso lembrar Santa Coletta de Corbie (+ 1447). Nos seus esforços para renovar a Ordem franciscana, teve sucesso até nos conventos masculinos. O seu movimento continua até hoje entre as Clarissas.


As duas formas de vida das Ciarissas:


As Damianitas


Elas se baseiam na Regra de Santa Clara (1253). Atualmente, a maioria dos mosteiros segue essa Regra.


As Urbanitas


Cerca de 80 mosteiros de Clarissas adotaram a Regra de Papa Urbano IV (1263). Atrás destas denominações se esconde a realidade de uma unificação apenas relativa. No fundo, cada mosteiro continua autônomo. Mosteiros que têm aspectos em comum se juntam em federações bastante desarticuladas. A importância dos movimentos de reforma e das “obediências” continua ininterrupta. Estão até surgindo novas formas de vida, p.ex., Clarissas que – além da Regra de Clara – obedecem também à “Regra para os Eremitérios”.


TERCEIRA ORDEM


Fazendo do Movimento dos Penitentes o ponto de saída para Francisco e Clara, chega-se em linha reta até a “Ordem Franciscana da Penitência”, como a Terceira Ordem foi chamada inicialmente. Apesar de não serem exatamente derivações, as duas outras Ordens são, pelo menos, condensações da “Ordem da Penitência”.


Desde cedo, a fascinação exercida pela pessoa de Francisco suscitou conseqüências para a própria Ordem da Penitência. Provavelmente, foi em Greccio o lugar onde a Terceira Ordem de São Francisco nasceu. Isto não seria sem importância, porque em Greccio aconteceu também a primeira festa do presépio, a revelação da Religião da Encarnação.


Certa vez, Francisco declarou: “Entre as cidades grandes não muitas se converteram à penitência como Greccio, que não é outra coisa senão uma pequena cidade-castelo”. E o relato depois continua: “Pois muitas vezes, quando os irmãos de Greccio cantavam o louvor de Deus, assim como costumavam fazer em muitos lugares, então o povo da cidade, grandes e pequenos, saíam de suas casas e se juntavam no caminho fora do lugar e respondiam em alta voz aos irmãos: “Seja louvado o Senhor, nosso Deus!” Até mesmo crianças pequenas, que mal sabiam falar, louvavam a Deus tanto quanto podiam, cada vez que encontravam os irmãos”. (LegPer 74). Logo, tratava-se, na Terceira Ordem, de convertidos que voltavam a praticar a sua fé e a contar com Deus na sua vida diária. Reconhecendo a Deus, deram testemunho que Ele era o Senhor de suas vidas, adorando e honrando-o “em suas casas”. Isto é a expressão sempre repetida que se dava à forma original desta Ordem. Em outras palavras, tratava-se de pessoas que procuravam viver a sua fé nas suas famílias, nas suas profissões e através de seus afazeres dentro da sociedade.


Francisco deu uma espécie de Regra a este grupo de seguidores, a assim chamada “Carta dos Fiéis”. A história dessa carta é interessante, pois, de fato, existem duas versões. A primeira redação, aliás, não é outra coisa senão uma exortação à penitência (1CtFi). A segunda redação (2CtFi) é acrescida pela recomendação de atitudes fundamentais da vida espiritual e por orientações concretas.


As duas cartas são enriquecidas – em sentido teológico e espiritual – por uma impressionante introdução (cf. o prólogo do Evangelho de S. João). Já na primeira lição do nosso curso destacamos a centralidade desta peça significativa para a compreensão e interpretação da vocação franciscana.


Já foi mencionado também o “Memoriale”, o estatuto não escrito por Francisco, mas que regulava os aspectos organizatórios e jurídicos da vida franciscana. Este estatuto tinha e continua tendo importância, porque contém – como afirmação central – a obrigação de recursar-se ao serviço militar. Neste ponto, aparece a força subversiva da Ordem Terceira que continua a manter-se viva até hoje.


Baseados neste estatuto, os penitentes podiam juntar-se em fraternidades. Não há dúvida que inicialmente foram lideradas por leigos. O acompanhamento espiritual, ou seja, a cura de almas, foi assumida por Dominicanos, Franciscanos ou outras Ordens. Tempos depois, porém, as comunidades leigas autônomas foram obrigadas a ceder a sua própria direção às Ordens religiosas. Aqui se manifesta uma regulamentação que se pode constatar sempre de novo; pois, continuou normativa durante a ulterior história da Terceira Ordem, levando até a expressões “desnaturadas”: A Igreja clerical achava que devia colocar tudo sob seu controle e dependência, porque tinha pouca confiança em formas autônomas de associações de leigos. Em 1289, o “Memoriale” foi substituído pela Regra do Papa Nicolau IV, que submeteu todo o Movimento de Penitentes à Ordem franciscana. As relações jurídicas e espirituais com a Primeira Ordem foram reforçadas. Somente a partir desta data é possível falar oficialmente de uma Ordem Terceira propriamente dita. Vale ainda a pena mencionar que outros grupos, que até então tinham obedecido ao “Memoriale” sem se orientar por Francisco, acabaram afiliando-se a outras Ordens, fundando suas próprias “Ordens Terceiras”, p.ex., a “Ordem Terceira de São Domingos”.


Historicamente, a Terceira Ordem desenvolveu formas múltiplas. Entre elas, é possível distinguir as seguintes “formas de vida”:


A forma original: “os convertidos na própria casa”


A personalidade mais conhecida que se possa mencionar neste contexto é a amiga de São Francisco: “Irmão” Jacoba Frangipani de Settesole. Muitas vezes, quando estava em Roma, Francisco costumava morar na casa desta mulher. Ela acorreu quando Francisco estava no leito de morte e teve o privilégio de ser sepultada perto do sepulcro dele (cf. 3Cel 37-39). Uma outra pessoa que pertence a este grupo é o bem-aventurado Luquésio de Poggibonsi (+ 1260). Com sua esposa Bonadonna, ele se dedicou carinhosamente aos pobres.


Os reclusos


Foram homens e mulheres que se deixaram encerrar numa torre ou na muralha de sua cidade para fazer penitência. Queriam, deste modo, seguir a Francisco. Entre eles, vale mencionar Sta. Margarida de Cortona (+1297) que – depois de uma vida sem Deus – queria conhecer unicamente a Deus. De fato, deu um testemunho extraordinário aos seus contemporâneos.


Durante a Idade Média acabou sendo quase o dever de cada cidade manter sua própria “reclusa” ou um “eremita”. O povo acorria para confiar-lhes suas mágoas e contava com sua intecessão junto a Deus.


Irmandades


Originariamente, tratava-se de mulheres que espontaneamente se uniam para levar uma vida em comum. Deram-se-lhes os mais variados nomes, como p.ex., “a Coleção”, ou “Irmãs da Floresta” etc. No início não pretendiam seguir a espiritualidade franciscana. Entre elas, as Beguinas acabaram submetendo-se ao controle eclesiástico, obedecendo à resolução de Vienne (1311-1312) e assumindo a Regra da Ordem Terceira. Com o tempo, foram obrigadas a aceitar a clausura; em outras palavras, uma forma monástica rígida. Muitas irmandades, que ainda hoje existem, tiveram uma origem semelhante. Algumas continuam enclausuradas ou – com o tempo – acabaram transformando-se em congregações.


A Ordem masculina regular


As comunidades masculinas não sofreram a mesma sorte, apesar de terem quase a mesma origem. É verdade que seguiram a Regra da Ordem Terceira, mas em vez de aceitar a clausura, foram adaptando-se à forma de vida da Primeira Ordem. Esta forma, que recebeu a aprovação eclesiástica em 1323, continua hoje como uma espécie de Quarta Ordem Franciscana masculina, sob a direção de seu próprio Ministro Geral (TOR/OSF).


As Congregações


Ainda nos séculos XV e XVI, mulheres, que se uniram por motivos religiosos para acudir a necessidades sociais (enfermagem, ensino, educação etc), não podiam viver simplesmente o estilo de vida escolhido por elas mesmas, sem serem controladas por autoridades eclesiásticas. O Direito Canônico as forçava a reentrar na clausura. Somente no século XVII sugiram esporadicamente “congregações”, quer dizer, comunidades com fins apostólicos que assumiram tarefas sociais no espírito de São Francisco. No século XIX, se chegou até a uma explosão de tais comunidades. Na presença de uma tão grande pluriformidade é preciso perguntar se realmente continua havendo um denominador comum entre elas. Convém notar que cada uma destas expressões franciscanas realmente chegou a realizar coisas importantes no decorrer da história. Muitas iniciativas saíram delas, muitas personalidades deram testemunho de sua força vital, muitas deixaram sua marca num ambiente, numa cidade, numa região, num país inteiro. Apesar disso, aconteceu que no decorrer da história acabaram afastando-se entre si, em vez de se unirem. Em conseqüência, boa parte de sua força vital se perdeu nas disputas mútuas.


As duas formas atuais da Terceira Ordem Franciscana são as seguintes:


A Terceira Ordem Regular (TOR/OSF)


Pertencem a esta Ordem, 22 congregações masculinas e 382 congregações femininas, assim como alguns institutos com a mesma Regra em comum. Esta Regra foi aprovada pelo Papa João Paulo II no dia 8 de dezembro de 1982. Tanto pelo seu teor, como pelo seu espírito, é mais franciscana do que qualquer uma das outras Regras que lhe são anteriores. Entre as congregações, há várias que continuam autônomas, formando somente uma associação bastante livre. Seus membros fazem os três votos e professam uma forma de vida baseada nos “conselhos evangélicos”, ou seja, na pobreza, na obediência e no celibato. Portanto, pela sua organização estão mais perto da Primeira e da Segunda Ordem do que da Terceira Ordem Secular propriamente dita.


Existe ainda também uma série de conventos femininos, com clausura rigorosa, que pertencem à Terceira Ordem Regular. Em vários países, a abreviação mais usada por elas é “OSF” (= Ordem de São Francisco”).


A Terceira Ordem Secular (OFS)


Inicialmente, esta “Ordem de Penitentes” tinha uma grande importância na sociedade civil; mas através dos tempos acabou sendo somente uma fraternidade piedosa. Em certa época, isto é no século XIX, o Papa Leão XIII esperava muito da renovada Terceira Ordem Secular, dando-lhe – para este fim – uma nova Regra. De acordo com a opinião normativa de Leão XIII, esta Ordem de São Francisco deveria fornecer, não somente o fundo espiritual da Igreja e da vida pública, mas devia ser também o portador e o verdadeiro instrumento da mensagem sócio-ética da Igreja para, desta maneira, minar as idéias do Marxismo. De fato, na segunda metade do século XIX, a Terceira Ordem Secular foi levada por uma dinâmica renovadora, tornando-se uma das organizações responsáveis pelas famosas “Semanas Sociais” na França, onde exigências sócio-políticas audaciosas foram formuladas. Depois de pouco tempo, porém, essa dinâmica foi cortada por intervenções eclesiais: Sob o Papa Pio X, foi-lhe proibido continuar ocupando-se de modo representativo do setor sócio-político. Desta maneira, uma grande chance se perdeu. Em muitos países, a Terceira Ordem Secular acabou ficando insignificante.

Nos últimos decênios, porém, surgiu nova chance num outro nível: fraternidades de OFS, originalmente organizadas em volta de conventos da Primeira Ordem, estão começando a unir-se para formar federações nacionais. Finalmente, chegou-se até a uma unificação em nível mundial, dirigida por um Ministro Geral. Agora, esse Ministro (ou essa Ministra Geral, respectivamente) já é tão respeitado e reconhecido que chega a assinar documentos importantes junto com os Ministros Gerais das outras Ordens. A situação é promissora. Há uma chance real de que a “Religião da Encarnação”, descoberta e proclamada por Francisco e Clara, seja promovida em todos os setores seculares. Também, a nova Regra vai contribuir para este fim, pois difere essencialmente de todas as Regras anteriores.


Até hoje, as fraternidades ainda se sentem comprometidas pelo “Memoriale”, ou seja, a Regra aprovada pelo Papa Nicolau IV que é marcada por uma ascese sombria e desencamada. Pelo contrário, a nova Regra, aprovada em 24 de junho de 1978 pelo Papa Paulo VI, é toda ela imbuída do autêntico espírito franciscano.


Citamos uma voz representativa das fraternidades da OFS da América do Norte: “A nova Regra paulina de 1978 convoca a Terceira Ordem Secular inequivocamente a fazer parte da ‘vanguarda evangelizadora’ (Bahia 1983, 17) junto com os outros ramos da família franciscana. Além dos muitos aspectos da missão, que elas têm em comum com os franciscanos e franciscanas das diversas Ordens, ou seja, a obrigação de anunciar o Reino de Deus pelo testemunho pessoal e modelar, a Terceira Ordem Secular, ainda tem – junto com outros movimentos de leigos – uma missão especial a cumprir, ou seja, ‘a renova ção da ordem secular no mundo’ (Decreto sobre o Apostolado dos Leigos). Este empenho por uma renovação é ‘o fermento’ que coloca o coração e o espírito de Cristo nas coisas diárias dos homens e das mulheres que estão no mundo. Pela concentração em setores de atividades apostólicas, procuram dar-lhes uma conotação franciscana. Entre estes apostolados específicos é preciso nomear: o sagrado estado da família, o trabalho como uma dádiva recebida, capaz de valorizar o melhoramento da humanidade, o engajamento como vanguarda através de ‘iniciativas corajosas em prol da justiça, da Paz e da preservação da Natureza isto é, o conjunto da criação animada ou inanimada, para protegê-la e preservá-la.”


Fonte: http://fatima.com.br/web/breve-historico-e-subdivisao-dos-franciscanos/

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Primeiro Século do Franciscanismo

Se é verdade que falar em Franciscanismo é falar em São Francisco, assim como falar em Cristianismo é falar em Jesus Cristo, também é verdade que há uma história do Franciscanismo, para além da pessoa de São Francisco. Foi-me pedido que tratasse do 1º século da história do Franciscanismo. Vou dividir a minha exposição em três partes:

antes, durante e depois de São Boaventura. A primeira parte abrange o período que vai da simples fraternidade primitiva até à estruturação da Ordem. A segunda parte coincide com o generalato de São Boaventura. A terceira compreende o tempo que se segue até à ruptura dos "Espirituais".


1 - Da simples Fraternidade à estruturação da Ordem


Por influência dos Ministros e dos Irmãos letrados, bem como dos privilégios concedidos pela Santa Sé, a Ordem Franciscana, logo após a morte de São Francisco, entrou numa fase de forte organização interna que já não se compadecia com a simplicidade da vida inicial. No ano seguinte à morte de São Francisco, no Capítulo de 1227, foi eleito Geral o Ministro Provincial de Espanha, Frei João Parente, que procurou harmonizar a fidelidade ao genuíno espírito de São Francisco com as aspirações e reivindicações dos letrados. Muitos irmãos se assustaram com as mudanças e o encaminhamento da Ordem que tendia para uma clericalização e isenção da mesma, frente à hierarquia. Cresceu entre eles o temor de infidelidade à Regra de São Francisco. É que os irmãos inovadores pretendiam uma interpretação da Regra, sancionada pela autoridade da Igreja, a fim de a melhor compreender e observar. Não compreendiam em que medida estavam "obrigados" a observar o Evangelho, e como era possível compaginar a pobreza absoluta com a necessidade de possuir alguns bens imprescindíveis para o progresso da Ordem. Para este progresso, os letrados esbarravam

com duas dificuldades: o Testamento de São Francisco e a oposição secular. É nesta altura que aparece a Bula "Quo Elongati" de Gregório IX, em 1230, como primeira Declaração Pontifícia da Regra. Esta Bula deixou a muitos irmãos desapontados por lhes parecer que estavam a desviar-se da simplicidade do ideal evangélico, tal como São Francisco o tinha consignado na Regra e exposto no Testamento. A Bula, com efeito, declarava que o Testamento não tinha força obrigatória; os Irmãos só estavam obrigados aos conselhos evangélicos expressos na Regra; podiam recorrer aos "amigos Espirituais"; os Irmãos apenas tinham o simples "uso de facto". No ano seguinte a Bula "Nimis iniqua" declara a isenção dos irmãos da jurisdição episcopal.


1.1. A evolução incrementada por Frei Elias


Frei João Parente não foi capaz de conter as exigências revolucionárias dos Ministros e letrados, e veio a suceder-lhe de novo Frei Elias, no Capítulo Geral de 1232. Frei Elias exerceu uma influência decisiva na evolução da Ordem. Muito contestado pelos zelosos observantes da Regra, conseguiu instaurar os estudos e organizar as Missões do Oriente. Empenhou-se em estruturar e engrandecer a Ordem para que esta pudesse rivalizar com as outras grandes Ordens, particularmente com a Beneditina. Decidiu apresentar à Igreja e ao mundo um São Francisco nimbado de glória, e levantou-lhe uma grande Basílica. Para este projecto não teve dificuldade em conseguir toda a espécie de apoios. O próprio Gregório IX, que era aliás um grande amigo pessoal e admirador de São Francisco, apadrinhava este empreendimento. Pelo seu carácter absorvente e centralizador, provocou o descontentamento de muitos Provinciais que logo trataram de o depor no Capítulo seguinte. Assim, no Capítulo Geral de 1239 foi eleito, em vez de Frei Elias, o Provincial de Inglaterra, Frei Alberto de Pisa. Para obviar aos inconvenientes do absolutismo de Frei Elias, promulgaram-se as primeiras "Constituições" que regulavam a vida dos Irmãos, especialmente dos Irmãos Ministros, e concretamente do Irmão Ministro Geral. Os Capítulos passam a ser a autoridade máxima da Ordem. Em termos de hoje poderíamos dizer que se repôs o espírito democrático. Poucos meses depois, morre Frei Alberto de Pisa e sucede-lhe um mestre da Universidade de Paris, Frei Haymón de Faversham que havia sido a alma do Capítulo de 1239. Foi um verdadeiro precursor de São Boaventura e soube valer-se das experiências positivas dos Irmãos de São Domingos, como por exemplo, no que se refere ao Capítulo dos "definidores".


1.2. - Consequências desta primeira evolução


O movimento de renovação e actualização da Ordem, desencadeado pelos inovadores e apoiado por Frei Elias, fez com que a Ordem se tornasse na primeira força religiosa da Igreja, respaldada pela protecção dos Papas. Ficavam para trás, como saudosas recordações, as experiências heróicas da aventura evangélica dos primeiros companheiros. À simplicidade austera dos primeiros tugúrios verdadeiramente pobrezinhos, e à espontaneidade das relações fraternas dos primeiros irmãos, sucedia-se

a centralização nas grandes cidades, com espaçosos conventos. À pobreza, cheia de confiança na Divina Providência, à semelhança das aves do céu e dos lírios dos campos (Mt 6, 25 ss) sucedia a preocupação de obter meios mais estáveis de vida. A organização dos estudos transformou-se numa fortaleza académica. A esmola perde o significado primitivo e substitui o trabalho manual como meio normal de subsistência. Os trabalhos mais humildes são entregues a criados seculares. O regime interno da Ordem adopta o estilo da vida monástica, e entra-se numa administração cada vez mais necessitada de novas justificações jurídicas para poder dispor de dinheiro.


1.3. - A Bula "Ordinem Vestrum"


De novo recorrem ao Papa e obtêm de Inocêncio IV a Bula "Ordinem Vestrum" (1245) que permite o recurso aos "amigos espirituais" para as diversas transacções pecuniárias e declara que os bens da Ordem são por direito propriedade da Santa Sé, que os administra através de um "procurador". O breve "Quanto Studiosius" que veio pouco depois, alargava mais o poder dos Provinciais em ordem à administração dos bens, através de "homens de confiança" nomeados por eles. O preceito da Regra que dizia "os Irmãos de nada se apropriem" que para São Francisco tinha um sentido nitidamente evangélico, passa a ser interpretado só juridicamente, transformando a pobreza real numa pobreza legal. Com a distinção entre direito de propriedade e simples uso de facto ficava ressalvada a pobreza à face da Lei, mas a Dama Pobreza corria o risco de ser ultrajada com o pecado da infidelidade. Viviam ainda alguns dos primeiros companheiros de São Francisco e a própria Santa Clara que continuamente recordavam a heroicidade da pobreza dos primeiros anos.Gerou-se então um movimento de irmãos que reclamavam o direito de viver "espiritualmente" a Regra e por isso se denominaram" Espirituais". Não viam possibilidade de conciliar a fidelidade genuína à Regra com as concessões das Bulas Papais. Ao mesmo tempo, outros irmãos também queriam ser fiéis a São Francisco e à sua Regra, embora aceitando a evolução que consideravam irreversível e a orientação oficial da Ordem. Estes constituíram o grupo chamado da "Comunidade", que funcionavam a modos de uma ala esquerda em confrontação com a ala de extrema direita dos "Espirituais"


1.4. - A política de centro ou a via intermédia de Crescêncio de Iesi (1244-47)


O Ministro Geral que se segue, Crescêncio de Iesi, de novo recorre à Bula Papal "Ordinem Vestrum" a que já fizemos referência, o que veio a desgostar tanto os "Espirituais" como grande parte dos da "Comunidade". A sua preocupação de manter o meio termo entre uns e outros desgostou sobretudo os inovadores. Deu-se conta de que a memória de São Francisco ainda era catalizadora e mobilizadora da vocação de todos os irmãos e por isso encarregou Tomás de Celano de escrever uma Segunda Vida de São Francisco que recolhesse todos os dados referentes à vida do Santo Fundador. Tomás de Celano escreveu esta Segunda Vida com preocupações de pacificação e de crítica aos exageros de ambas as partes. Apesar de tudo isto este Geral não conseguiu restabelecer a paz. Vai-lhe suceder João de Parma.


1.5. - O regresso às Fontes com João de Parma (1247-57)


João de Parma, eleito no Capítulo Geral de Lião, foi bem recebido por todos, dado o seu prestígio de homem de ciência e de virtude. No seu governo privilegiou o exemplo e a virtude mais do que a ciência. Dele disse Frei Gil: "chegaste em boa hora mas já vens tarde". Tudo fez para se retomar o fervor primitivo e garantir a fidelidade às antigas tradições. Não fez caso das concessões das Bulas Papais. Na luta contra os inimigos de fora aconselhava humildade e mansidão. Insistia na observância da Regra e do Testamento. Embora bem aceite por todos, havia alguns descontentes, por lhes parecer que a Ordem assim não avançava. Acabou por renunciar, também por indicação do Papa Alexandre IV, retirando-se para o eremitério de Greccio, mas recomendou que elegessem para Geral a Boaventura de Bagnoregio, que então era Mestre em Paris.


2 - A ORDEM DURANTE O GENERALATO DE SÃO BOAVENTURA (1257-74)


Não falta quem considere São Boaventura um "Segundo Fundador". E há até quem o acuse de ter desvirtuado a obra de São Francisco. Na verdade, não foi nem uma coisa nem outra. Aceitou a Ordem na sua evolução normal e procurou dinamizá-la com a observância comum da Regra.


2.1. - A Ordem em conflito com algumas forças da Igreja


São Francisco havia ensinado que os Irmãos Menores deviam ser sempre submissos aos Bispos e aos sacerdotes. Bastantes destes, porém, desde o princípio que não viam com bons olhos a autorização concedida pelos Papas aos Franciscanos de exercerem a cura de almas, a ponto de o Papa Gregório IX ter saído em sua defesa. A própria Universidade de Paris se ergueu como adversário da Ordem porque os mestres seculares da Sorbona, capitaneados por Guilherme de Saint'Amour, não queriam aceitar os Dominicanos e Franciscanos como Catedráticos na Universidade. Negavam aos mendicantes o direito a professar a pobreza (ensinavam que a mendicância era contrária ao Evangelho), o direito de exercer o ministério pastoral e até o direito de existirem. São Boaventura saiu em defesa da Ordem com os seus dois Tratados: Questões de perfeição evangélica" e "Apologia dos pobres", nos quais estabelece os seguintes princípios:


1. A pobreza voluntária é o mais alto grau de perfeição evangélica.

2. Têm direito a pregar e a ensinar o Evangelho sobretudo aqueles que o praticam.

3. A pregação é um direito que os irmãos receberam do Papa que é o primeiro pastor próprio de todos os fiéis.

4. Os irmãos têm o direito a viver do Evangelho, isto é, têm direito a mendigar.


2.2. - O governo interno da Ordem


Além dos adversários externos, São Boaventura teve de enfrentar outros inimigos, talvez mais fáceis, que se encontravam dentro da Ordem: o movimento dos "Espirituais". Procurou fazer ver a estes que a fiel observância espiritual da Regra - da qual ele por sinal era modelo - era compatível com a evolução da Ordem. Durante o seu generalato adoptou os seguintes critérios que apresentou como orientações dos irmãos:


1. Os Irmãos podem ficar tranquilos com a interpretação da Regra feita pelo Papa, porque este é o pastor supremo da Igreja e da Ordem.

2. São Francisco é o modelo para todos, é a forma dos menores. E por isso ele escreveu a Legenda Maior como biografia oficial da Ordem, apresentando São Francisco como cópia fiel de Cristo crucificado. Afasta-se, no entanto, dos "Espirituais" na interpretação do ideal de minoridade, nomeadamente no que se refere ao trabalho, à insegurança evangélica, ao receio dos estudos, à espontaneidade, etc.

3. A observância regular deve antes de mais ser fiel ao espírito de pobreza que é a maior glória e a principal característica da Ordem. Não foi favorável às mitigações das Bulas Pontifícias, embora aceitando os "procuradores" da Santa Sé. Foi rigoroso em não aceitar dinheiro, mas permitiu algumas discretas provisões de esmolas. Os conventos grandes deviam estar nas cidades.

4. Os estudos e a ciência são necessários aos franciscanos como condição de preparação para poderem pregar.

5. A acção apostólica faz parte essencial da Ordem. Devem-se estabelecer acordos com os Bispos e os párocos, em espírito de minoridade.

6. Só se devem aceitar, no campo do apostolado, os privilégios concedidos a toda a Ordem e não os concedidos a favor de uma Província ou de um religioso.

7. A legislação das Constituições de Narbona, promulgadas no Capítulo Geral de

1260, nada de novo introduzem na vida interna dos Irmãos. O Capítulo Geral

continua a ser a máxima autoridade da Ordem.

8. O "Joaquinismo" (Doutrina de Joaquim di Fiore, que um pouco mais à frente explicaremos) foi implacavelmente reprimido.


São Boaventura, durante os 17 anos do seu governo, foi aceite praticamente por todos, devido ao prestígio do seu saber e da sua virtude. Soube harmonizar, com muito tacto e equilíbrio, o amor a São Francisco e ao progresso da Ordem; o apreço pelos eremitérios retirados e a aceitação dos grandes conventos nas cidades. Sob a sua orientação, a Ordem sentiu-se internamente segura, exteriormente admirada, e muito apreciada pela Santa Sé que lhe confiava missões importantes.


2.3. - Nova luta e nova defesa da Ordem pela Santa Sé


São Boaventura participou na preparação do Segundo Concílio de Lião e veio a falecer, já Cardeal, durante o mesmo Concílio. Vários padres conciliares propuseram a supressão de todas as Ordens aparecidas após o IV Concílio de Latrão. O Papa Gregório X respondia-lhes: "Vivei como eles vivem, estudai como eles estudam e obtereis os mesmos resultados".


Entretanto após a morte de São Boaventura, sucederam-lhe Jerónimo de Ascoli e Bonagrazia de São João. A pedido do Geral, o Papa Nicolau III interveio em defesa da Ordem com a Bula "Exiit qui seminat" (1279), retomando toda a argumentação de São Boaventura, pondo em destaque a distinção entre uso de direito e uso de facto. O "uso de facto" é o único permitido e tem de ser um uso pobre. O Sumo Pontífice proibia severamente que alguém falasse ou escrevesse contra os Menores e a sua Regra. Foram depois permitidos os "síndicos apostólicos" como procuradores seculares dos religiosos. Assim uma vez mais se solucionava juridicamente o problema da fidelidade à pobreza.


2.4. - A discussão à volta dos privilégios


O Padre Geral Bonagrazia, que tinha obtido do Papa a Bula de defesa da Ordem, recomendava aos seus frades que evitassem toda a polémica com o clero secular. A discussão agora travava-se acerca dos privilégios concedidos pelos Papas que autorizavam os Franciscanos a confessar e a pregar, sem necessidade de licença dos Bispos ou dos párocos. Os Bispos Franceses uniram-se para contestar, com decisão e firmeza, os privilégios concedidos pelas Bulas Pontifícias de Martinho IV (1281-85), Honório IV (128587) e Nicolau IV (que tinha sido o Geral que sucedeu a São Boaventura). Bonifácio VIII (1294-1303) com a Bula "Supra Cathedram" procurou determinar sabiamente a relação entre os frades e o clero secular. Os frades, porém, entenderam que tinham sido prejudicados. Sucedeu-lhe Bento XI (1303-04) que de novo foi mais favorável aos religiosos. Isto suscitou nova contenda na qual tomou parte o célebre João Duns Escoto, a defender a posição do Papa. Veio pouco depois o Concílio de Viena (1311-12), em que ficou definida a isenção dos religiosos. Internamente estes apenas devem obediência ao Papa. Enquanto à actividade apostólica fora das suas Igrejas, dependerão dos Bispos e dos sacerdotes seculares.


3 - A QUESTÃO DOS ESPIRITUAIS


3.1. - A influência do Joaquinismo


Após a morte de São Boaventura, estalou violentamente a questão dos "Espirituais" que transpôs o limiar das fronteiras do franciscanismo para se transformar num fenómeno de âmbito eclesial. A primeira confrontação dos religiosos zelantes contra os da "Comunidade" já se tinha verificado durante o governo de Crescêncio de Iesi, vindo progressivamente a avolumar-se até que atingiu proporções de autêntica insurreição, de separação da Ordem e de rebelião contra a Sé Apostólica. A Fundamentação teológica

da corrente dos Espirituais encontra-se, de certo modo, na concepção escatológica do Abade Joaquim de Fiore (+ 1202), segundo o qual a história da salvação divide-se em três épocas: a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo. A primeira, a do Pai, que vai de Adão a Cristo, é dirigida pela ordem dos casados ("Ordo conjugatorum"). A segunda, a do Filho, que vai desde Cristo até ao tempo do autor, é dirigida pela ordem dos clérigos ("Ordo clericorum"). A terceira, a do Espírito Santo, deve ser dirigida pela ordem dos

monges ("Ordo monachorum"). O Pai impôs a Lei pelo temor. O Filho escolheu a disciplina porque é sabedoria. O Espírito Santo desencadeou a liberdade porque é amor. Com esta terceira etapa foi superada e ultrapassada a igreja da hierarquia, com os seus sacramentos e as suas leis, e foi instaurada a Igreja espiritual: assembleia de alegria, de amor e de liberdade, composta por homens espirituais, pobres e menores, verdadeiros modelos de vida cristã que terão por pastor e guia um Santo Padre, o Pontífice Angélico. Esta etapa será anunciada pela aparição do "Anjo do Sexto Selo" que ostentará "o sinal do Deus vivo" e será portador do Evangelho eterno para todos os povos. Estas ideias penetraram dentro da ala direita da Ordem Franciscana através do livro "Introdução ao Evangelho Eterno" de Gerardo de Borgo San Donnino (+ 1276). Muitos dos "Espirituais" viram em São Francisco o "Anjo do Sexto Selo", assinalado com os estigmas e portador do "Evangelho eterno", que seria a Regra. Entenderam que os franciscanos seriam esses "homens espirituais" destinados a instaurarem a nova ordem, e a nova Igreja espiritual, sob o sinal da pobreza. Os "Espirituais" passam agora a ser os que, pertencendo à Igreja espiritual, se opõem à hierarquia, adquirindo assim esta denominação um novo sentido.


3.2. - As principais figuras dos Espirituais


Durante o Concílio de Lião, surgiu na Província das Marcas um movimento que hoje chamaríamos de objectores de consciência que preconizava a desobediência ao Papa, por julgarem que este ia obrigar os franciscanos a possuir bens em comum. Entre os rebeldes destacaram-se Pedro de Macerata (+ 1307) e o famoso Ângelo Clareno (+ 1337). Outra campanha dos Espirituais desencadeou-se na região da Provença, e teve como principal corifeu Pedro João Olivi (+ 1298), teólogo eminente e tido por santo. Foi o verdadeiro chefe ideológico do movimento revolucionário. Opunha-se sobretudo à doutrina do "uso pobre" da Bula "Exiit qui seminal". O Papa Nicolau IV, juntamente com o Geral Mateus de Acquasparta procedeu duramente contra eles. Mas quando foi eleito Celestino V (1287-89), que era um santo monge, viram nele o "Papa Angélico" das profecias de Joaquim di Fiore e sentiram-se protegidos por ele. Veio logo a seguir Bonifácio VIII que excomungou Ângelo Clareno e demitiu o Geral Gaufredi (1289-95) que os protegia. Nos ataques contra o Papa distinguiu-se outro grande chefe dos Espirituais, da região da Toscana, Ubertino de Casale (+ 1329) homem douto e contemplativo mas também algo visionário, que pregava contra a "Igreja carnal".


3.3. - Nova discussão e a Bula "Exivi" (1309-12)


Clemente V (1305-14) quis ser mais suave que Bonifácio VIII e foi condescendente para com os Espirituais. Nomeou uma comissão de Cardeais para levar a cabo uma investigação imparcial. Foram convocados religiosos representantes das duas facções. A princípio, parecia que tudo seria favorável aos Espirituais, mas foram os da Comunidade que ao fim viram reconhecidas as suas razões. A Bula "Exivi de paradiso" (1312) estabelece o grau de obrigatoriedade de cada um dos preceitos da Regra. Nela haveria 27 preceitos graves; doze exortações; seis conselhos e doze condições para admissão de noviços. A intenção era de sossegar as consciências. Mas não foi possível evitar a separação.


3.4. - Ruptura (1312-18)


O Papa tudo fez para pacificar a Ordem e tomou a seu cuidado a protecção dos Espirituais. O próprio Geral esforçou-se por corrigir todos os abusos contra a pobreza e demitiu todos os superiores que haviam sido demasiado duros para com os Espirituais. Tudo foi inútil. Era demasiado profundo o fosso cavado entre os dois grupos. Em vários sítios apareceram comunidades cismáticas dos Espirituais, particularmente na Toscana, na Sicília e na Provença. Bastantes deles foram encarcerados e outros excomungados por João XXII, que com a Bula "Sancta Romana" (1317) condenava os Espirituais de qualquer denominação. Não faltaram sequer as prisões perpétuas e as condenações à fogueira. Ubertino de Casale passou a viver com os Beneditinos mas quis conservar-se franciscano até à morte. Ângelo Clareno, refugiado no monte Subiaco constituiu-se Geral dos "Irmãos de vida pobre" (Fraticelli della povera vita). No seu livro "Apologia pro vita sua", faz a sua declaração de amor à Regra de São Francisco e de fé na Igreja, a quem se sente unido pelo Espírito Santo, embora condenado pela autoridade hierárquica. Tanto Ângelo Clareno como Ubertino de Casale quiseram ser reformadores autónomos e legitimamente reconhecidos, não o tendo, porém, conseguido. Os Clarenos, continuadores dos "fraticelli" aceitaram os Visitadores apostólicos enviados por Martinho V, São João Capistrano e Santiago da Marta. Vieram mais tarde a reconciliar-se com a Igreja sob os pontificados de Eugénio IV (1413-17) e de Sixto IV, que em 1473 os colocou sob a obediência do Ministro Geral da Ordem. Em 1517 integraram-se totalmente nos Irmãos da "Observância".


CONCLUSÃO


O último decénio da vida de São Francisco já tinha sido decisivo para a fisionomia da nova Ordem, mas não há dúvida que foi o primeiro século que se lhe seguiu que acabou por dar à Ordem uma organização mais estruturada.


A caminhada foi árdua e difícil. A tensão, que já no tempo de São Francisco tinha aflorado entre as exigências dos irmãos letrados e a simplicidade dos primeiros companheiros agravou-se após a morte de São Francisco, por causa da interpretação da Regra e da observância da pobreza. A luta entre os "Espirituais" e os da "Comunidade" que trouxe à Ordem muitos dissabores e deserções, foi providencial para se clarificar, à luz do magistério da Igreja, qual o rumo que a Ordem devia seguir.


Era urgente discernir qual era o verdadeiro espírito da Regra e nomeadamente o da pobreza. Foi o que se conseguiu com sangue suor e lágrimas! A luta travada neste primeiro, século vai agora prolongar-se nos séculos seguintes, pelos mesmos motivos, entre os Irmãos da "Observância" e os Irmãos "Conventuais", aos quais se virão juntar, já no século XVI, os Irmãos "Capuchinhos".


Fr. Miguel Negreiros. OFMCap in Cadernos de Espiritualidade Franciscana, nº 6, pp. 17-26

domingo, 25 de setembro de 2022

Regra da OFS de 1978

 Seraphicus Patriarcha 

BREVE APOSTÓLICO "SERAPHICUS PATRIARCHA"


Pelo qual a santa sé aprova e confirma a Regra da Ordem Franciscana Secular


Paulo VI Papa

Para perpétua memória.


O Seráfico Patriarca São Francisco de Assis, em vida e depois de sua preciosa morte, atraiu não somente muitos para servirem a Deus na família religiosa que fundara, mas arrastou também numerosos leigos que, permanecendo no mundo, se agregaram às suas Ordens. Pois, para usarmos as palavras de Pio XI, Nosso Predecessor, "parece... que jamais houve homem algum em quem brilhasse mais viva a imagem de Jesus Cristo e em quem fosse mais semelhante a forma evangélica de viver do que em Francisco. Por isso, ele, que se havia denominado o "Arauto do Grande Rei", foi com razão proclamado um "Outro Cristo", por se ter apresentado aos contemporâneos e aos séculos futuros como um Cristo redivivo; como tal ele vive ainda hoje aos olhos dos homens e continuará a viver por todas as gerações futuras" (Enc. Rite Expiatis, 30.4.1926; AAS 18, 1926, p. 154). Alegramo-nos, portanto, porque o "carisma franciscano" conserva vigor ainda hoje, para o bem da Igreja e da comunidade humana, apesar do serpejar de doutrinas acomodatícias e do crescimento de tendências que afastam os homens de Deus e das coisas sobrenaturais.


Com louvável esforço e um trabalho comum, as quatro Famílias Franciscanas, pelo espaço de um decênio, se empenharam para elaborar uma nova Regra da Ordem Terceira Secular ou, como agora é chamada, da Ordem Franciscana Secular. Isso pareceu necessário devido às novas condições dos tempos e porque o Concílio Ecumênico Vaticano II salutarmente publicou preceitos e sugestões pertinentes a este assunto.


Por isso, os diletos filhos Ministros Gerais das quatro Ordens Franciscanas nos manifestaram o pedido de aprovarmos a Regra assim preparada. Nós, seguindo o exemplo de alguns de Nossos Predecessores, dos quais Leão XIII o fez por último, decidimos, de boa vontade, aceder a esses pedidos. Dessa maneira, Nós, confiando que a forma de vida pregada por aquele admirável Homem de Assis, receberá um novo impulso e florescerá com vigor, depois de ter consultado a Sagrada Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares, que examinou diligentemente o texto apresentado, tendo ponderado tudo atentamente, com segura ciência e madura deliberação Nossa, aprovamos e confirmamos, com Nossa Apostólica Autoridade, em virtude destas Letras, a Regra da Ordem Franciscana Secular e lhe acrescentamos o vigor da Sanção Apostólica, contanto que concorde com o exemplar conservado no arquivo da Sagrada Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares, cujas primeiras palavras são "Inter spirituales familias, e as últimas "ad norman Constitutionum petenda".


Simultaneamente, por estas Letras e por Nossa autoridade ab-rogamos a anterior Regra da Ordem Terceira Franciscana Secular, como era chamada. Estabelecemos, finalmente, que estas Letras permaneçam firmes e atinjam plenamente seus efeitos, agora e no futuro, não obstante qualquer coisa em contrário.


Dado em Roma, junto de São Pedro, sob o anel do Pescador, no dia 24 do mês de junho de 1978, décimo sexto ano do Nosso Pontificado.


JOÃO CARD. VILLOT

Secretário de Estado


Na Secretaria de Estado, Arqu. n. 352241


REGRA DA ORDEM FRANCISCANA SECULAR

PRÓLOGO - EXORTAÇÃO DE SÃO FRANCISCO AOS IRMÃOS E IRMÃS SOBRE A PENITÊNCIA


Em nome do Senhor!


Dos que fazem penitência


Todos os que amam o Senhor, "de todo coração, de toda a alma e de toda a mente, com todas as suas forças" (Mc 12,30) e "amam o seu próximo como a si mesmos" (Mt 22,39), e odeiam o próprio corpo com seus vícios e pecados, e que recebem o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e fazem dignos frutos de penitência: quão felizes são estes e estas que assim agirem e perseverarem até o fim, porque "sobre eles repousará o Espírito do Senhor" (Is 11,2) e Ele fará neles sua habitação e sua "morada" (Jo 14,23), e eles são filhos do Pai celestial (Mt 5,45) cujas obras fazem e são esposos, irmãos e mães de Nosso Senhor Jesus Cristo (Mt 12,50).


Somos esposos, quando a alma fiel está unida a Nosso Senhor Jesus Cristo pelo Espírito Santo.


Somos seus irmãos, quando fazemos "a vontade do Pai, que está nos céus" (Mt 12,50). Somos mães, quando o trazemos em nosso coração e em nosso corpo (lCor 6,20) pelo amor divino e por uma consciência pura e sincera; e o damos à luz pelas obras santas que, pelo exemplo, devem ser luz para os outros (Mt 5,16).


Como é honroso ter no céu um Pai santo e grandioso! Como é santo ter um tal esposo, consolador, belo e admirável Como é santo e como é amável ter um tal irmão e um tal filho agradável, humilde, pacífico, doce, amorável e sobre todas as coisas desejável: Nosso Senhor Jesus Cristo que entregou sua vida por suas ovelhas (Jo 10,15) e por nós orou ao Pai, dizendo: "Pai santo, guarda-os em teu nome (Jo 17,11), os que me deste no mundo; eram teus, mas tu m’os deste (Jo 17,6). E as palavras que me deste, eu as dei a eles e as receberam e creram em verdade que saí de ti e conheceram que tu me enviaste" (Jo 17,8). Rogo por eles, "não pelo mundo" (Jo 17,9). Abençoa-os e "santifica-os" (Jo 17,17) e "por eles eu próprio me santifico" (Jo 17,19). "Não rogo somente por eles, mas também por quantos hão de crer em mim mediante a palavra deles (Jo 17,20), para que sejam santificados na unidade (Jo 17,23), como nós" (Jo 17,11). "Pai, quero que, onde eu estou, eles estejam comigo para que vejam a minha glória (Jo 17,24) no teu reino" (Mt 20,21). Amém.


Dos que não fazem penitência


Todos aqueles e aquelas que não vivem em espírito de penitência e não recebem o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e praticam vícios e pecados, e caminham atrás da má concupiscência e dos maus desejos da sua carne e não cumprem o que prometeram ao Senhor e com seu corpo servem ao mundo, aos desejos carnais, às solicitudes deste mundo e às preocupações desta vida: dominados pelo demônio, do qual são filhos e cujas obras praticam (Jo 8,41), estão cegos, porque não reconhecem a verdadeira luz, Nosso Senhor Jesus Cristo. Não possuem a sabedoria espiritual porque não têm o Filho de Deus, que é a verdadeira sabedoria do Pai; dos quais está escrito: "A sabedoria deles foi devorada" (S1 106,27) e: "Malditos os que se afastam dos teus mandamentos" (S1 118,21).


Percebem e reconhecem, têm consciência e praticam o mal e perdem deliberadamente suas almas. Reparai, ó cegos, iludidos por vossos inimigos: pela carne, pelo mundo e pelo demônio; porque é agradável ao corpo praticar o pecado, e amargo fazê-lo servir a Deus, porque todos os vícios e pecados "saem do coração do homem e de lá procedem" como diz o Senhor no Evangelho (Mc 7,21).


E nada tendes de bom neste mundo, nem no futuro. E julgais possuir por longo tempo as coisas deste mundo, mas estais enganados, porque virá o dia e a hora na qual não pensais, que desconheceis e ignorais. 0 corpo adoece, a morte se avizinha e assim o homem morre de uma morte infeliz. E onde, quando e de tal modo como venha a morrer um homem em pecado mortal, sem penitência e reparação - e ele pôde fazer penitência mas não a fez o demônio lhe arranca a alma do corpo sob tal angústia e medo, que ninguém é capaz de conhecer, senão aquele próprio que o experimenta. E ser-lhes-ão tirados (cf. Lc 18; Mc 4 25) todos os talentos e os poderes e a ciência e a sabedoria (2Cr 1,12) que julgavam possuir. E deixam os seus bens parentes e aos amigos e depois que estes se apoderam deles e os distribuíram entre si disseram: Maldita seja a sua alma, porque pôde ter dado e ganho mais para nós do que aquilo que conseguiu. 0 corpo, comem-no os vermes e assim eles perderam o corpo e a alma neste mundo passageiro, e irão para o inferno, onde serão atormentados para sempre.


Ao conhecimento de todos quantos chegar esta carta, rogamos, por aquele amor que é Deus (1Jo 4,16), que recebam benignamente estas palavras odoríferas de Nosso Senhor Jesus Cristo. E os que não sabem ler, façam-nas ler muitas vezes; e guardem-nas na memória, pondo-as santamente em prática até o fim, pois elas são "espírito e vida" (Jo 6,64). E os que não o fizerem, terão de prestar "contas no dia do juízo" (Mt 12,36), "perante o tribunal" de Nosso Senhor Jesus Cristo (Rm 4,10).


Esser K., Opuscula S. Patris Francisci.

Editiones Colegii S. Bonaventurae, Ad Claras Aquas, Grottaferrata, 1978, pp. 108-112.


Capítulo I - A ORDEM FRANCISCANA SECULAR (OFS)


1. Entre as famílias espirituais, suscitadas pelo Espírito Santo na Igreja, a Família Franciscana reúne todos aqueles membros do Povo de Deus, leigos, religiosos e sacerdotes, que se sentem chamados ao seguimento do Cristo, à maneira de São Francisco de Assis.


Por modos e formas diversas, mas em recíproca comunhão vital, eles querem tornar presente o carisma do comum Pai Seráfico na vida e na missão da Igreja.


2. No seio da dita família, ocupa posição específica a Ordem Franciscana Secular que se configura como uma união orgânica de todas as fraternidades católicas espalhadas pelo mundo e abertas a todos os grupos e fiéis. Nelas, os irmãos e as irmãs, impulsionados pelo Espírito a atingir a perfeição da caridade no próprio estado secular, são empenhados pela Profissão a viver o Evangelho à maneira de São Francisco e mediante esta Regra confirmada pela Igreja’.


3. A presente Regra, após o "Memoriale Propositi" (1221) e após as Regras aprovadas pelos Sumos Pontífices Nicolau IV e Leão XIII, adapta a Ordem Franciscana Secular às exigências e expectativas da santa Igreja nestes tempos de acentuadas mudanças. A sua interpretação compete à Santa Sé e a aplicação será feita pelas Constituições Gerais e por Estatutos particulares.


Capítulo II - A FORMA DE VIDA


4. A Regra e a vida dos franciscanos seculares é esta: observar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo o exemplo de São Francisco de Assis, que fez do Cristo o inspirador e o centro da sua vida com Deus e com os homens".

Cristo, dom do Amor do Pai, é o caminho para Ele, é a verdade na qual o Espírito Santo nos introduz, é a vida que Ele veio dar em superabundância’. Os franciscanos seculares se empenhem, sobretudo na leitura assídua do Evangelho, passando do Evangelho à vida e da vida ao Evangelho.


5. Os franciscanos seculares, portanto, procurem a pessoa vivente e operante do Cristo nos irmãos, na Sagrada Escritura, na Igreja e nas ações litúrgicas. A fé de São Francisco, que ditou estas palavras: "Nada vejo cor-poralmente neste mundo do altíssimo Filho de Deus, senão o seu santíssimo Corpo e o santíssimo Sangue", seja para eles a inspiração e o caminho da sua vida eucarística.


6. Sepultados e ressuscitados com Cristo no Batismo, que os torna membros vivos da Igreja, e a ela mais fortemente ligados pela Profissão, tornem-se testemunhas e instrumentos da sua missão entre os homens, anunciando Cristo pela vida e pela palavra.


Inspirados por São Francisco e com ele chamados a restaurar a Igreja, empenhem-se em viver em comunhão plena com o Papa, os Bispos e os Sacerdotes, promovendo um confiante e aberto diálogo de fecundidade e de riqueza apostólicas.


7. Como "irmãos e irmãs da penitência""’, em virtude de sua vocação, impulsionados pela dinâmica do Evangelho, conformem o seu modo de pensar e de agir ao de Cristo, mediante uma radical transformação interior que o próprio Evangelho designa pelo nome de "conversão", a qual, devido à fragilidade humana, deve ser realizada todos os dias". Neste caminho de renovação, o sacramento da Reconciliação é sinal privilegiado da misericórdia do Pai e fonte de graças.


8. Assim como Jesus foi o verdadeiro adorador do Pai, façam da oração e da contemplação a alma do próprio ser e do próprio agir’. Participem da vida sacramental da Igreja, principalmente da Eucaristia, e se associem à oração litúrgica em uma das formas propostas pela mesma Igreja, revivendo assim os mistérios da vida de Cristo.


9. A Virgem Maria, humilde serva do Senhor, disponível à sua palavra e a todos os seus apelos, foi cercada por Francisco de indizível amor e foi por elo designada Protetora e Advogada da sua família"’. Que os franciscanos seculares testemunhem a Ela seu ardente amor pela imitação de sua incondicionada disponibilidade e pela prática de uma oração confiante e consciente’’.


10. Unindo-se à obediência redentora de Jesus que depôs sua vontade nas mãos do Pai, cumpram fielmente as obrigações próprias da condição de cada um nas diversas situações da vida, e sigam o Cristo, pobre e crucificado, testemunhando-o, mesmo nas dificuldades e perseguições’.


11. Cristo, pondo toda a sua confiança no Pai, embora apreciasse atenta e amorosamente as realidades criadas, escolheu para Si e para sua Mãe uma vida pobre e humilde’; assim, os franciscanos seculares procurem, no desapego e no uso, um justo relacionamento com os bens temporais, simplificando as próprias exigências materiais; estejam, pois, conscientes de que, segundo o Evangelho, são administradores dos bens recebidos em favor dos filhos de Deus.

Assim, no espírito das "Bem-aventuranças", se esforcem para purificar o coração de toda inclinação e avidez de posse e de dominação, como "peregrinos e forasteiros" a caminho da casa do Pai.


12. Testemunhas dos bens futuros e empenhados pela vocação abraçada em adquirir a pureza do coração, desse modo tornar-se-ão livres para o amor de Deus e dos irmãos.


13. Assim como o Pai vê em cada ser humano os traços do seu Filho, Primogênito entre muitos irmãos, os franciscanos seculares acolham todos os homens com espírito humilde e benevolente, como um dom do Senhor e imagem de Cristo.


O sentido da fraternidade os tornará dispostos a igualar-se com alegria a todos os homens, especialmente aos mais pequeninos, para os quais procurarão criar condições de vida dignas de criaturas remidas por Cristo’’’.


14. Chamados, juntamente com todos os homens de boa vontade, a construírem um mundo mais fraterno e evangélico para a realização do Reino de Deus e conscientes de que "quem segue a Cristo, Homem perfeito, também se torna mais homem", assumam as próprias responsabilidades com competência e em espírito cristão de serviço.


15. Estejam presentes pelo testemunho da própria vida humana, bem como por iniciativas corajosas, quer individuais quer comunitárias, na promoção da justiça, particularmente no âmbito da vida pública, comprometendo-se com opções concretas e coerentes com sua fé.


16. Estimem o trabalho como um dom e como participação na criação, na redenção e no serviço da comunidade humanas.


17. Em sua família vivam o espírito franciscano de paz, de fidelidade e de respeito à vida, esforçando-se para fazer dela o sinal de um mundo já renovado em Cristo.


Os esposos, em particular, vivendo as graças do matrimônio, testemunhem, no mundo, o amor de Cristo por sua Igreja. Mediante uma educação cristã simples e aberta de seus filhos, atentos à vocação de cada um, caminhem alegremente com eles em seu itinerário humano e espiritual.


18. Tenham, além disso, respeito pelas outras criaturas, animadas e inanimadas, que "do Altíssimo trazem um sinal" e procurem, com afinco, passar da tentação de sua exploração ao conceito franciscano da fraternidade universal.


19. Como portadores de paz e lembrando-se de que ela deve ser construída incessantemente, procurem os caminhos da unidade e dos entendimentos fraternos mediante o diálogo, confiantes na presença do germe divino que existe no homem e na força transformadora do amor e do perdão. :Mensageiros da perfeita alegria, procurem, em qualquer circunstancia, levar aos outros a alegria e a esperança.


Inseridos na Ressurreição de Cristo, que dá o verdadeiro sentido à Irmã Morte, encaminhem-se serenamente ao encontro definitivo com o Pai.


Capítulo III - A VIDA EM FRATERNIDADE


20. A Ordem Franciscana Secular se articula em Fraternidades de vários níveis: local, regional, nacional e internacional, que têm na Igreja a sua própria personalidade moral’. Essas Fraternidades dos diversos níveis estão coordenadas e ligadas entre si segundo a norma desta Regra e das Constituições.


21. Nos diversos níveis, cada Fraternidade é animada e conduzida por um Conselho e um Ministro (ou Presidente) que são eleitos pelos Professos, de acordo com as Constituições". Seu serviço, que é temporário, é um cargo de disponibilidade e de responsabilidade em favor de cada membro e dos grupos.


As Fraternidades, internamente, se estruturam de modo diverso, de acordo com as Constituições, segundo as variadas necessidades dos seus membros e das suas regiões, sob a moderação do respectivo Conselho.


22. A Fraternidade local deve ser erigida canonicamente, e assim ela se torna a célula primeira de toda a Ordem e um sinal visível da Igreja, comunidade de amor. Ela deverá ser o ambiente privilegiado para desenvolver o sentido eclesial e a vocação franciscana e ainda para animar a vida apostólica de seus membros.


23. Os pedidos de admissão à Ordem Franciscana Secular são apresentados a uma Fraternidade local, cujo Conselho decide sobre a aceitação dos novos irmãos.


A incorporação na Fraternidade se realiza mediante um período de iniciação, um tempo de formação de, ao menos, um ano e pela Profissão da Regra. Em tal itinerário gradual está empenhada toda a Fraternidade, também no seu modo de viver. Quanto à idade para a Profissão e ao sinal distintivo franciscano, é assunto a ser regulado pelos Estatutos.


A Profissão, por sua natureza, é um compromisso perpétuo’".


Os membros que se encontrem em dificuldades particulares, cuidarão de tratar dos seus problemas com o Conselho em diálogo fraterno. 0 afastamento ou a exclusão definitiva da Ordem, se realmente necessária, é ato de competência do Conselho da Fraternidade, de acordo com a norma das Constituições.


24. Para fomentar a comunhão entre os membros, o Conselho organize reuniões periódicas e encontros freqüentes, inclusive com outros grupos franciscanos, especialmente de jovens, adotando os meios mais apropriados para um crescimento na vida franciscana e eclesial, estimulando cada um à vida de fraternidade"". Uma tal comunhão prossegue com os irmãos falecidos mediante o oferecimento de sufrágios por suas almas".


25. Para as despesas que ocorrem na vida da Fraternidade e para as necessárias às obras do culto, do apostolado e da caridade, todos os irmãos e irmãs ofereçam uma contribuição na medida de suas próprias possibilidades. Cuidem as Fraternidades locais de contribuir, por sua vez, para saldar as despesas dos Conselhos das Fraternidades de grau superior".


26. Em sinal concreto de comunhão e de co-responsabilidade, os Conselhos, nos diversos níveis, de acordo com as Constituições, solicitarão aos Superiores das quatro Famílias Religiosas Franciscanas, às quais desde séculos a Fraternidade Secular está ligada, religiosos idôneos e preparados para a assistência espiritual.


Para favorecer a fidelidade ao carisma e a observância da Regra e para se ter maiores auxílios na vida da Fraternidade, o Ministro ou Presidente, de acordo com seu Conselho, seja solícito em pedir, periodicamente, a visita pastoral aos competentes Superiores religiosos e também a visita fraterna aos responsáveis de nível superior, segundo as Constituições.


"E todo aquele que isto observar,

seja repleto no céu da bênção

do altíssimo Pai, e seja, na terra,

cumulado com a bênção do seu

dileto Filho, juntamente com o

santíssimo Espírito Paráclito."


(Bênção de São Francisco, do Testamento)


SÃO FRANCISCO E OS PENITENTES

Na época de São Francisco pertencer a Ordem dos Penitentes representava um estado definitivo e permanente de vida, semelhante ao estado reli...